O Globo - RJ 20/12/2008
Demétrio Weber e Adauri Antunes Barbosa
Antropóloga, pesquisadora, professora da Universidade de São Paulo (USP), a primeira-dama Ruth Cardoso transformou a política social no Brasil nos oito anos em que esteve no poder ao lado do marido, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, seu companheiro por 55 anos. Decretou o fim da Legião Brasileira de Assistência (LBA), baniu o clientelismo, criou o Comunidade Solidária, impôs suas convicções em defesa de um novo modelo de ação social, em parceria com a sociedade, e imprimiu estilo inovador e discreto ao cargo de primeira-dama. Sua morte, em 25 de junho deste ano, aos 77 anos, após infarto fulminante, uniu na dor o ex-presidente Fernando Henrique e o presidente Lula, num exemplo do reconhecimento unânime de seu legado, que resulta agora na escolha de Ruth Cardoso como Personalidade do Ano do Prêmio Faz Diferença do GLOBO.
— A obsessão da Ruth era romper com o clientelismo — diz o deputado Paulo Renato Souza (PSDB-SP), que foi ministro da Educação nos oito anos do governo Fernando Henrique.
O desafio era imenso. Já em 1995, quando Fernando Henrique tomou posse no Planalto, foi extinta a LBA, foco de desvios de verbas e clientelismo no governo Collor, sob a gestão da primeiradama Rosane Collor. Ruth imprimiu outra lógica. Ela presidia o conselho do Comunidade Solidária, cuja tarefa era coordenar ações de diferentes ministérios e articular parcerias com a iniciativa privada. Paulo Renato lembra que Ruth tinha identidade própria: a formação acadêmica e a militância social vinham antes da condição de primeira-dama. Outros ex-colaboradores exaltam o trabalho da época.
— O Comunidade Solidária rompeu com a cultura clientelista no combate à pobreza. Deu nova feição às políticas públicas, enfrentando a pobreza de forma mais abrangente, com projetos de educação, trabalho, saúde, saneamento.
Os recursos eram alocados de forma transparente — diz a socióloga Anna Maria Peliano, secretáriaexecutiva do programa de 1995 a 98.
Para o atual ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, Ruth pôs na agenda do governo o combate à pobreza e lançou as sementes dos programas sociais do governo Lula: — Tenho grande respeito pela memória da dona Ruth Cardoso, pelo que ela representou no plano acadêmico, das pesquisas, como uma grande e notável educadora. Quando lançou no governo do presidente Fernando Henrique o programa Comunidade Solidária, ela pautou a questão social dos pobres, dos excluídos e dos trabalhadores de baixa renda — diz Patrus.
Anna Peliano é hoje coordenadora de Estudos de Responsabilidade Social no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em Brasília.
Ela destaca a ênfase dada por Ruth às parcerias com a iniciativa privada, uma forma de mobilizar a sociedade e driblar a falta de recursos.
Ela dava ênfase à educação e ao diálogo
Foi assim que surgiu o Alfabetização Solidária, cujo objetivo era combater o analfabetismo de jovens e adultos. O projeto teve continuidade depois do governo FH: deu origem a uma organização não-governamental, a Alfasol, que já atendeu mais de cinco milhões de iletrados.
O Universidade Solidária mobilizava instituições de ensino superior, enviando estudantes a regiões pobres para trabalhos sociais. Segundo Anna Peliano, Ruth vibrava com os relatos de universitários que voltavam dos grotões. E considerava indispensável avaliar os resultados.
— Ela tinha formação acadêmica sólida e diferenciada, que lhe permitiu dar ênfase à educação.
Tinha experiência de trabalho em ONGs, o que lhe ajudava no diálogo com a sociedade.
E uma vivência de militância em prol dos direitos sociais que lhe dava a visão de política enquanto direito — diz Anna.
— A maior contribuição da Ruth foi mostrar uma nova maneira de fazer política social. Uma forma participativa, com envolvimento da sociedade junto com o poder público e que significou uma inovação para tudo o que já se havia feito no Brasil e no exterior. Todos os programas sociais conhecidos até então eram estatais.
Desde a sua concepção, o Comunidade Solidária buscava a inovação, o envolvimento da comunidade — observa Paulo Renato.
Para Patrus, o esforço de Ruth Cardoso está na origem das atuais políticas sociais: —A professora Ruth Cardoso teve um papel muito importante na retomada da temática social e colocou para nós todos o início de um processo que encontra agora a sua expressão maior nas obras e nos programas sociais que estamos implementando no governo do presidente Lula, especialmente no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
O governador tucano José Serra, de São Paulo, diz que as homenagens à amiga Ruth Cardoso fazem o país se revelar: — Pouco antes de sua morte, o presidente John Kennedy, ao participar de uma homenagem ao poeta Robert Frost, disse que uma nação se revela não apenas pelos indivíduos que produz, mas também por aqueles que decide homenagear.
O Brasil se revelou grande neste ano pelas tantas coisas boas e justas que foram ditas a respeito da Ruth Cardoso. O que se viu foi raro, muito raro, entre nós. Elogios à discrição, à dignidade, à simplicidade, à coerência, ao rigor intelectual, ao ativismo solidário conseqüente e inovador desta pessoa tão especial que nos deixou.
Ruth nos lembrou a todos as nossas melhores virtudes, nela reunidas de maneira exemplar.
Lola Berlinck, coordenadora da Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária (AAPCS), disse que o Faz Diferença para Ruth Cardoso é muito apropriado: — A Ruth é uma pessoa que realmente fez muita diferença no trabalho social no Brasil. Ela fez muita diferença no combate ao fim do assistencialismo e das práticas assistencialistas.
Ela introduziu o conceito do desenvolvimento humano na prática social brasileira e, em seguida, do desenvolvimento social — disse.
Pelo trabalho que tinha feito como pesquisadora, antropóloga, ela acreditava, segundo a presidenta da AAPCS, que havia uma rede de suporte ao desenvolvimento social já posta no Brasil, que eram as ONGs de base.
— E ela fez muita diferença no movimento de fortalecimento dessas ONGs. Não eram ONGs grandes como aquelas da década de 90, de pessoas nobres e destacadas, mas eram aquelas que lutavam pelo bem e pela qualidade de vida do bairro das comunidades mais próximas. A Ruth fez a diferença por aí. Outra grande diferença que ela fez foi a dizer o seguinte: essas ONGs de base podem atuar em espaços em que o Estado está muito distante e não enxerga as necessidades que podem alavancar mudanças. A partir dela tudo mudou. Isso é disseminado — afirmou.
Para o ex-ministro Celso Lafer, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Ruth conhecia o país e os movimentos sociais: — Ela tinha clareza quanto à importância da sociedade e que cabia fazer coisas não apenas no plano do Estado, mas também no plano da sociedade.
Foi com base nisso que concebeu o Comunidade Solidária, que significava deixar de lado o tradicional assistencialismo e tentar ensinar às pessoas a serem elas mesmas com educação e com conhecimento do seu próprio potencial.
É o que pensa também Regina Esteves, presidenta da Alfabetização Solidária: — A gente que trabalhou com ela durante 13 anos pode dizer: foi uma oportunidade de fazer um doutorado na prática. Ela não era só uma teórica, mas também preocupada com a aplicação das teorias, com o resultado prático do trabalho.
Para Maria Helena Guimarães de Castro, secretária estadual de Educação de São Paulo, o trabalho dela foi uma das coisas mais importantes na evolução das políticas sociais brasileiras “por ter conseguido aliar o trabalho acadêmico com uma prática política muito importante”: — Isso se reflete muito claramente nas ações do Comunidade Solidária e de como foram organizadas as parcerias público-privadas para desenvolver políticas sociais no Brasil. Ruth sempre teve uma enorme preocupação com a participação política, com o protagonismo das pessoas.
Então, todo o esforço dela era no sentido de fazer com que as pessoas participassem cada vez mais e se tornassem autônomas e realmente responsáveis pelas ações que estavam desenvolvendo.
Ela tinha horror a qualquer forma de paternalismo, de dirigismo estatal
Foi ela, lembrou Cláudia Costin, futura secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, quem trouxe a noção de política social para o Brasil: — Até então existiam estudos sobre política social, mas não existia uma concepção não clientelista. Dona Ruth pôs a política social na agenda em uma abordagem não clientelista, com a idéia de que se deve monitorar os avanços, de que há um espaço para a participação sociedade civil, não só na implementação, mas como parceira de política pública.
Integrante da Comunidade Solidária, a médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança, conviveu com dona Ruth Cardoso: — Ela fez de tudo para que o país tivesse programas oficiais que fossem capazes de diminuir desigualdades sociais.
Paulista de Araraquara, Ruth Cardoso era doutora em antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Fez pós-doutorado na Universidade de Columbia em Nova York e também foi professora em universidades americanas e inglesas. Entre os programas sociais desenvolvidos pela ex-primeiradama na gestão Fernando Henrique estavam o Alfabetização Solidária, que chegou a alfabetizar mais de 2,5 milhões de jovens nos municípios mais pobres do país, o Universidade Solidária, que mobilizava estudantes e professores universitários para ações de desenvolvimento social, e o Capacitação Solidária, que treinou mais de cem mil jovens para o mercado de trabalho nas grandes regiões metropolitanas.
A atuação social continuou, fora do governo: ela se dedicou ao comando da ONG Comunitas, responsável por programas sociais e de voluntariado.
Foi vigilante, dentro e fora do governo. Respeitada até por adversários políticos, a antropóloga que detestava ser chamada de primeira-dama se transformou em uma crítica da política social do governo Lula, que considerava assistencialista. Em 1994, antes da posse do marido, no primeiro mandato, comprou briga com o PFL, maior aliado na campanha de Fernando Henrique, ao afirmar: “O PFL tem Antonio Carlos (Magalhães), mas tem Gustavo Krause e Reinhold Stephanes”. Na época, Fernando Henrique considerou a frase infeliz e pediu desculpas formais a ACM. Ela também chamou o PFL de “fisiológico” e disse que o partido mudara “não porque é bonzinho, mas porque perdeu poder.